O dia 24 de dezembro sempre é muito aguardado por uma criança
de 7 anos. Confesso que mesmo sentindo todos os aromas que vinham da cozinha,
meu coração disparava e eu só pensava no que viria depois da ceia.
Enquanto mamãe preparava um enorme peru com farofa eu olhava
pela janela e pensava que a essa hora papai Noel já havia começado sua viagem.
Enquanto mamãe perguntava se o peru estava tenro, eu me perguntava se o
velhinho, já cansado e com tantos compromissos, não iria esquecer logo o meu
presente.
Escrevi uma carta com um mês de antecedência para dar tempo
dele recebê-la e providenciar sem correria o meu pedido pois a pressa é a inimiga da
perfeição, como diz mamãe, que gosta de tudo organizado e nunca esquece nada.
Isso foi no ano de 2012, em que as crianças já não pediam mais bolas e
carrinhos. A tecnologia invadia o mundo e os sonhos infantis.
A carta dizia assim:
Papai Noel,
Como vai? Espero que tenha tido um bom ano. Sabe? Eu fui bem
nas provas finais e não fiquei em recuperação. Fui um bom menino o ano todo.
Quase não briguei com meus primos e dei lugar para os velhinhos no ônibus mesmo
quando eu estava cansado do futebol e a minha mochila estava pesada.
Eu queria te dar uma sugestão: você poderia criar uma página na internet
onde nós, crianças, escreveríamos para você. Isso ia facilitar, pois os pedidos
iam chegar mais rápido e ia evitar que os correios perdessem nossas cartas.
Acho que no ano passado minha carta se perdeu, pois eu pedi um smartphone e
ganhei um jogo de boliche. Não estou reclamando não, papai Noel, queria até te
agradecer mas você sabe, quando a gente sonha com alguma coisa, de repente fica
um pouco triste quando o sonho não se realiza. Sei que você já é velhinho e não
sabe criar uma página na internet. Então, quando você for lá na casa da vovó ,
pode pedir pro meu tio Ivan, que ele faz pra você.
Nesse ano, vou pedir de novo um smartphone. Se não for abuso,
gostaria que viesse com o plano de
internet, pois meus pais não vão poder pagar um plano para mim e smartphone sem
internet é igual aniversário sem bolo. Papai Noel, sei que você tem pressa
porque precisa entregar todos os presentes mas nesse ano eu também quero te dar
um presente: um desenho que eu fiz pra você na aula de Artes. E também quero te
dar um abraço. Então não vá embora sem falar comigo!
Pedrinho.
24/11/12
Passei o mês todo preocupado pensando se papai Noel tinha recebido mesmo a
minha carta. Reli a cópia que guardei todas as noites antes de dormir na dúvida
se eu o tinha cumprimentado com educação antes de pedir o meu presente. Aquele
mês foi de angústia e escrevi outras
cartas para o bom velhinho contando como havia sido o meu dia e minhas
aventuras na escola. Mas não cheguei a pedir que mamãe as enviasse porque sabia que Papai Noel
era muito ocupado e eu não podia tomar tanto tempo dele assim.
Mas o tão esperado dia chegou! A mágica começou na cozinha.
Mamãe ia transformando umas fatias de pão dormido numa coisa tão maravilhosa
que me fez sentir mesmo muito especial e que aquele era realmente o meu dia. Quando
ela colocou a travessa sobre a mesa, meus olhos não queriam acreditar naquela magia
que todos teimavam em dar um nome. Ela tirou o avental, passou a
mão de leve sobre as costas numa expressão de dor. Notei que todo aquele
encanto a tinha cansado um pouco. Tanto, que resolveu ir tomar banho sem nem
perceber o meu conflito.
Fiquei ali extasiado, perplexo olhando para a travessa, capaz
de imaginar o sabor transcendental daquela iguaria. A que estava bem no topo da
pirâmide me olhava nua, despida de qualquer vergonha e me convidava a uma noite
de luxúria. Nós nos desejávamos, nos queríamos
e nos possuímos num tempo que não pôde ser contado.
E foi exatamente naquele
momento, diante de toda obscenidade do mundo, que perdi minha inocência. Percebi que ele não vinha. E
que mamãe tinha deixado aquela bandeja ali intencionalmente porque precisava de
um cúmplice.
Na casa da vovó, enquanto todos riam e comiam felizes, eu
sentia o gosto amargo da rabanada. Já não importava mais o presente. Papai Noel
se perdeu dentro de mim. Já não nos pertencíamos e eu era apenas um garoto sem
fantasia.
Quinze anos depois quando entrei numa loja e fui comprar o
meu primeiro carro, um senhor de cabelo grisalho e expressão cansada me atendeu.
Nos encaramos e sorrimos na eternidade de um minuto. Ciente da escassez
da linguagem diante daquele momento abissal, preferi caminhar por terrenos sólidos. Perguntei:
-Você tem pronta entrega?