quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O dia em que nasci




Realizei o meu parto. Isso mesmo. Eu nasci e me trouxe ao mundo. Foi um pouco difícil e complicado. Não queria falar de detalhes mas é inevitável. O dia em que realizei o meu parto eu estava sentado na cama e não posso dizer que senti a dor porque já sentia há muito tempo mas não incomodava tanto então ia convivendo com ela. 



Porém, naquele dia a dor foi aumentando, aumentando. Eu deitei para ver se passava. Nada. Virei de lado, de bruços, me enrosquei todo e abracei minhas pernas na tentativa de encontrar uma posição confortável. A dor só aumentava. Eu comecei a suar. Suava por todos os poros. Transpirava por lugares que eu desconhecia.  Comecei a gemer.  Eu sentia que já não cabia mais dentro de mim. Precisava fazer qualquer coisa pra me livrar daquela dor. E parece que foi me dando uma loucura.

  Fui até a cozinha me apoiando nos móveis. Eu gemia. A dor já era insuportável. Peguei uma faca afiada, a mais afiada que eu tinha, voltei para o quarto ensandecido, deitei na cama meio de cócoras e sem nenhuma cerimônia, fiz o corte. Não usei nenhum tipo de anestesia. Nem sequer fumei ou bebi antes.  Cortei porque era preciso. E na emergência de nascer fui fazendo força, mais força, mais força e fui saindo lentamente. Primeiro a cabeça, depois o corpo que nem parecia um corpo. Era uma coisa meio gosmenta. O estranho é que eu não me reconheci. Fiquei ali parado perplexo me olhando enquanto eu, do outro lado, tinha uma espécie de visão turva, uma inconsciência da minha existência e num simples instinto de sobrevivência, comecei a chorar.

Fiquei com o cordão umbilical na mão. Era o único elo entre mim e minha mãe. Mas não nasci da minha mãe. Nasci de mim mesmo. Num dia como outro qualquer. Engraçado que sempre imaginei que o dia em que eu nascesse seria um dia especial, que iria acontecer algo diferente, como um sinal divino, algo assim. Achava que um pombo iria entrar pela janela, que o papa iria renunciar ou que iria cair um meteoro na Rússia. Mas nada aconteceu de anormal naquele dia com exceção do fato de eu ter nascido.

Digo anormal porque embora todos soubessem da minha longínqua gestação, ninguém acreditava que eu fosse nascer assim de uma hora para outra, assim num dia como outro qualquer. Eu nasci na minha casa com a minha faca. Cortei o cordão umbilical em pedacinhos e comi para não deixar nenhum vestígio.  Agora eu sou eu. Mas eu quem?

Não tenho nome. Não sei que nome me dar. Não tenho sexo. Cortei o que eu tinha. Pesava. Agora me sinto leve demais. Não sei andar sem o peso entre as pernas. Tropeço em mim mesmo. Não sou Ana nem Pedro nem Maria nem João. Não adianta insistir. Se é pra falar sobre mim, vou logo adiantando, não sei muita coisa. Nasci agora há pouco mas nasci quase em pé igual aos potros e já fui caminhando meio bêbado ou bêbada. No entanto, não paro de levar porrada. Toda hora. Por isso sei que tenho resistência de macho e me orgulho dela! Mas a dor é de parto. Dói muito! Eu nunca tive noção disso. Antes de nascer, tive um filho. Não fui eu que pari. Foi a Claudinha. Ela reclamava e eu sempre achava que era exagero de mulher. Eu alternava com ela em trocar as fraldas e levantar durante a noite quando a criança chorava. 

Um dia, fiquei sozinho com o moleque. Ele chorou e eu fiquei desnorteado. Peguei-o e aconcheguei-o no colo. Eu queria dar meu peito para ele. Eu queria sentir essa emoção de ver o moleque se alimentando do meu amor e de tudo que eu  sou por dentro.

Porque eu tenho muito amor. E esse moleque, Pedrinho, é um pedaço bonito de mim. Mas eu precisava nascer primeiro. Então disse isso a Claudinha e fui embora. Sei que nunca terei a bebida da vida para dar ao Pedrinho. Sempre soube disso. Mas precisava me livrar do excesso. Porém, sempre conviverei com essa ausência de mim mesmo. Porque embora eu tenha nascido, nasci faltando. Mas quando passo na rua percebo que não sou o único. As pessoas cantam seus excessos e bebem suas faltas nos bares.

Então caminho meio trôpego porque vou bebendo a vida. Nasci para a guerra. Mas não para lutar. Sou um arauto, um estrangeiro em terras desconhecidas. E por mais que eu conheça a nova língua, nunca compreenderei suas metáforas porque não sinto o sangue que escorre todo mês acompanhado da melancolia. Minha guerra é única porque não conheço a terra em que terei que entregar minha mensagem. Não tenho mapa, bússola, estratégia nem plano de fuga. Já tive que matar para sobreviver. 

E assim é a guerra mesmo para quem carrega a mensagem da paz. Ela é impiedosa para os vencedores e para os desertores. A vitória é sempre amarga porque há mortes e não traz a felicidade porque vem acompanhada pela dor do parto.

Mas sempre é preciso nascer, morrer e nascer de novo.


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