Eles sobem pelo muro e entram através da janela sem cerimônia. São muitos ao mesmo tempo. Vão
entrando aos cambulhões.
Parecem ter vagas intenções, são desorientados, andam para lá e para cá, sobem
e descem numa velocidade atroz. Caminham em minha direção. Vejo-os com seus
olhos diáfanos e assustadores. Eles começam a subir em mim. Guincham mostrando
uma fome ou uma superioridade. Não sei. Não entendo de ratos. Começam a tomar
conta de toda a minha superfície. Eles me mordem e chupam meu sangue. Querem
mais de mim. Mas eu não estou preparado. De repente estou tomado de ratos. Eles
me mordem! Eles me mordem! Eu tento suportar mas já não aguento. Eles me
atacam! Como dói! Eu me debato para
tentar afastá-los mas estão presos em mim. Enquanto me mordem, outros ratos
entram pela janela e vêm em minha direção disputar espaço com os que já estão.
E não param de entrar. Eu me debato então com mais força,
tento soltá-los com a minha mão. Mas eles não saem. Eles são mais fortes que
eu. Me atiro com violência contra a parede, me jogo no chão, rolo, grito. Eles
riem e regozijam-se.
Alguém
abre a porta. Eu grito: Os ratos! os ratos! os ratos! Aponto a janela, me atiro
contra a parede, me jogo no chão e não paro mais de gritar. As pessoas vêm em minha direção. Me seguram e eu grito: Não sou
eu! São os ratos! Aponto para a janela e grito desesperadamente: Tirem eles de
mim! Eles estão me mordendo! Todos ficam me olhando apavorados e eu percebo
que ninguém compreende. Mas os ratos se
assustam com as pessoas e começam a se desprender de mim. Ficam atônitos,
desorientados e começam a se esconder pelos cantos da casa. Sei que não vão
embora. Sei que nunca vão embora. Olho para mim. Estou cheio de feridas. Coloco
meu dedo sobre a ferida do braço esquerdo e aperto bem fundo. Aperto até ter a
sensação de que vou perder os sentidos. Então paro. O sangue viscoso começa a
sair e eu lambo como o instinto dos animais. Refaço tudo a cada ferida porque
quero ultrapassar a superfície.
Me
levaram a um especialista de ratos. O doutor Brandão. Um cara estranho. Sempre desconfiei
dele. Tinha a sensação de que ele também ia me atacar. Eu respondia errado às suas perguntas, não queria
que ele entendesse os meus ratos. Os meus ratos eram meus, só meus. Ninguém
tinha que se intrometer. Ainda mais um fantasma que se chamava Brandão. O olhar
vazio e a voz soturna faziam dele um sujeitinho petulante.
Um
dia joguei umas verdades em sua cara. Queria afrontá-lo. Mas o cara não
demonstrou nenhuma reação. Comecei a achar
que o doutor Brandão desenvolvia alguma patologia e precisava de ajuda.
Comprei
uns livros de Freud. Comecei a ler Os três ensaios sobre a sexualidade. Pensei que
o doutor Brandão deveria ter um interesse sexual pela sua mãe. Por isso ele era
assim tão recalcado a ponto de ter uma verdadeira fixação pelo meu pai. Fiquei
imaginando o doutor Brandão comendo a mãe e ela gritando. Mas eu não conhecia a
mãe do doutor Brandão então no meu pensamento ela tinha a cara da Soninha e um
corpo de velha.
Depois
passei a achar que o doutor Brandão era invertido. A fixação pelo meu pai
ultrapassava o sintoma do recalcamento. Isso me incomodava. Achava que ele
estava passando dos limites. Comer a mãe dele tudo bem mas querer comer o meu
pai aí eu não tolero. Quando ele vinha com a história do meu pai, eu mudava de
assunto. Começava a inventar uma cena dramática que eu nunca tinha vivido só
para tirar o foco dele.
Até
que em uma de suas exaustivas sessões ele se cansa de perguntar sobre minha
relação com meu pai ou com minha mãe e
me pergunta sobre uma cena da minha infância. Fico um tempo tentando me
lembrar e então vejo um rato. Era apenas um. O doutor Brandão diz que eu deveria
ficar atento àquele rato, prestar
atenção quando ele aparecia e em que circunstâncias, qual a representatividade
dele na minha vida, tentar dialogar com o rato, e eu pensei :
O caso do doutor Brandão é mesmo muito grave. Não tem cura. Trata-se possivelmente
de psicopatia. Talvez ele tenha sido molestado sexualmente na infância e o
trauma tenha lhe causado severos danos na formação de sua personalidade.
Então dei o veredito:
-Doutor Brandão, o caso é grave! Só com internação! Não volto
mais aqui!
Dei-lhe as costas e fui embora para que ele percebesse que a
situação não tinha argumento. Estava definida.
Três dias depois a equipe da desratização apareceu no meu
quarto. Logo pude perceber o profissionalismo deles- todos de uniforme branco o
que deveria ser o chefe da equipe, carregava uma maleta. Falei calmamente:
-Os ratos devem estar dormindo. Vi poucos hoje.
Um deles pediu para que eu os acompanhasse. Pensei “eles
devem querer que eu explique ao diretor da empresa como os ratos atuam para
elaborarem uma estratégia eficiente” Não sei por que mas antes de sair pensei
no doutor Brandão.