terça-feira, 31 de julho de 2012


Uma Casa ao Avesso


Era  uma casa grande e bonita. Seus habitantes promoveram uma festa que nunca terminou e portanto, ninguém foi embora. Casaram, tiveram filhos e seus filhos tiveram filhos.
A festa já estava na terceira geração quando comecei a sentir umas dores, uma sensação estranha. Fui andando até o banheiro e tudo aconteceu: senti uma dor horrível em todo o meu corpo que ia encolhendo a ao mesmo tempo surgindo pernas, antenas e asas. Fui cambaleando, meio tonto a ainda não tinha noção do que estava acontecendo quando olhei para frente no enorme espelho na parede e só vi uma barata. Fiquei me procurando até que percebi quando eu fazia um movimento, aquele bicho se mexia no espelho. Mexi a pata dianteira. Ela se mexeu. Mexi a traseira. Ela se mexeu. Enchi os pulmões de ar e senti que levitava. Vi a barata voando e quando desejei parar, beijei-a no espelho. Não tinha mais dúvida: eu era ela. Foi quando tive a infeliz ideia de contar aos meus amigos o que aconteceu. Saí correndo do banheiro e fui percebendo que as mulheres afastavam-se de mim com terror e quando cheguei por fim ao meu grupo, meus amigos tentaram me matar, pisavam freneticamente em mim e nem sequer deixavam-me falar, pois eu não queria ficar naquela situação e tentava desesperadamente me comunicar. Mas eles não me deram ouvidos, a menor consideração depois de tantos anos, é só ter um problema e pronto, os amigos viram a cara e ainda pisam em cima.
Devido a tanta falta de compreensão, resolvi me esquivar e procurei um canto para ficar. Sempre quando eles mudavam de ambiente, eu saía, revirava os restos de comida deixados sobre a mesa e dava uns goles numa cerveja qualquer esquecida. Depois me esgueirava de novo no meu buraco. Tudo ia razoavelmente bem mas comecei a sentir uma solidão muito grande. Incompreendido pelos amigos e sem nenhum ser da minha espécie para conversar, comecei a escrever poemas que tratavam da condição da existência quase humana. Numa tarde enquanto eu escrevia um dos meus poemas no sótão da casa, percebi alguma coisa se mover. Quando eu olhei, dei de cara com ela no outro lado da parede. Ela locomovia-se com altivez, parecendo ter consciência de ser a única fêmea de sua espécie nessa casa mas sem dúvida nenhuma, era uma rainha e como tal merecia ser reverenciada. Então, levantei-me e não poupei esforços para ser visto por ela. Caminhei com um certo ar aristocrático e levantei minhas asas a fim de demonstrar minha elegância. Percebi que ela me olhava meio ressabiada. Então alcei voo para me exibir visto que já estava apaixonado por aquele par de olhos amendoados. Dessa vez ela não me ignorou e aproximou-se pedindo desculpas por ter invadido minha casa. Disse que não se preocupasse pois há muito ansiava por companhia. Então ela me contou que morava do outro lado, no jardim mas só saía à noite para buscar comida. Perguntou o que eu fazia quando apareceu. Então falei sobre os meus poemas e prometi que os próximos seriam de amor e que eu iria sussurrá-los todas as noites ao seu ouvido. Ela riu. Foi então que percebi que nessa minha nova existência não sabia o que fazer com uma fêmea bonita. Mas foi ela quem tomou a iniciativa. Chegou bem pertinho de mim. Pude sentir seu perfume que me deixava extremamente excitado. Foi então que ela encostou suavemente suas antenas nas minhas e ficamos muito tempo assim agarradinhos nos antenando. Então ela subiu em cima de mim, beijou-me com sofreguidão. Pude sentir seus pelinhos roçando nos meus e encaixamos nossos corpos ardentemente. Depois adotamos a posição end-to-end e passamos a noite toda nessa maratona amorosa.
O sótão era o meu paraíso, um lugar idílico onde eu ia para me inspirar e escrever minhas poesias. Dois meses passaram desde que nos conhecemos e convidei minha rainha para morar comigo ali onde já era de certa forma, nosso ninho de amor. Disse que sairia do meu buraco e moraria com ela ali. Não precisaríamos fazer nenhuma adaptação visto que não éramos exigentes. Mas ela era uma barata moderna e preferia continuar no seu jardim e vir à noite me visitar.
A vida lá fora também estava se modificando. O que aconteceu comigo bruscamente  estava acontecendo com eles só que de forma bem gradual. A cada dia eles encolhiam um pouquinho e iam-lhes surgindo indícios de novos membros, fatos que nem percebiam. A  rotina de uma vida repleta de prazeres consumistas, a festa interminável e o álcool preenchiam-lhes os espaços e eles viviam felizes. Só eu percebia tudo. Só eu sentia a dor de já ter sido humano e ter visto o meu cérebro diminuir ao  tamanho de uma migalha de pão. As crianças que nasceram este ano já nasceram modificadas geneticamente- com seis patas, antenas, branquinhas feito uma gosma mas com formato de bebê humano. A última mulher que deu à luz, procurou um lugar tranquilo e úmido para depositar seus ovos. Ainda não vimos seus filhotes mas acredito que esses já vão nascer perfeitas baratinhas.

Resolvi escrever estas palavras e deixar registrada essa minha vida de pseudobarata para que cientistas possam estudar esse fenômeno que chamo de desevolução das espécies e que possam descobrir o que está acontecendo com essa casa que já foi tão humana e habitat de vida inteligente.
Bom, encerro aqui essas minhas observações pois tenho poucas horas de vida e estou perdendo minhas forças. No começo do mês eu resolvi dar uma saidinha pela manhã, ação que nunca pratiquei nessa vida de inseto pois, sempre fui prudente desde a minha forma humana. Fui buscar alimento para minha rainha que está grávida quando enfim, o Gustavo conseguiu me acertar com um sapato. Perdi uma pata e minha cabeça. Corri muito mesmo tonto e manco e consegui entrar numa fresta do azulejo. Só saí muitas horas depois. Nasceu outra pata em alguns  dias mas a perda da cabeça é realmente mortal até para uma barata. Desculpem-me se a letra estiver torta ou ilegível. Fiz o máximo que pude. Adeus minha rainha! Há um lugar da casa que recomendo aos meus príncipes e princesas que irão nascer- a biblioteca. Incentivo que a frequentem. Vale a pena correr os riscos!

domingo, 29 de julho de 2012


Laços Eternos

Arrumando o armário Domingo à tarde, encontrei perdida nesse imenso mundo de esquecimento, uma caixa de madeira onde eu guardo fotografias. É difícil arrumar o armário no Domingo porque cada coisa que encontro tem uma história e traz à tona cenas de um filme  à minha cabeça. Fico analisando cada peça retirada desse grande coração que é o meu armário e relembrando fatos. Por isso, da próxima vez que eu for arrumar o armário, vou começar na Segunda-feira para terminar no domingo.
Bom, encontrei a caixinha de madeira. Alguma coisa doeu dentro de mim. Não a abri imediatamente. Sentei na cadeira que fica junto à mesa do computador e fiquei alguns minutos olhando para ela. Eu sabia que lá dentro havia grandes momentos da minha vida. Por isso, estavam lá, na caixinha de madeira dentro do armário. Outras fotos encontravam-se em álbuns nas prateleiras do quarto porém as mais emocionantes, aquelas que iam me fazer rir ou chorar estavam lá, naquela caixa. Acariciei-a como se fosse um amor antigo, senti seu cheiro imponente de madeira velha, coloquei-a em cima da mesa. Eu olhava para ela e sentia uma dor imensa. Eu sabia que a minha avó estava lá, minha vozinha que eu só lembro dela magrinha, com cabelo branquinho, sentada em sua poltrona lendo um grande livro grosso que na época eu não entendia direito mas ela contava a história de alguém que dividiu um mar ao meio e o atravessou. Acho que veio daí, das histórias da vozinha, esse meu gosto por  Edgar Allan Poe, Jorge Luis Borges, Gabriel García Máquez, Julio Cortázar, Murilo Rubião e tantos outros escritores que escrevem sobre o fantástico, o insólito.
Sabia também que mamãe morava naquela caixinha. Ah! Mamãe, sempre tão carinhosa! Sempre tão preocupada! Eu sabia que aquela foto que eu estava no parquinho e mamãe me empurrando no balanço estava lá assim como a do dia da minha formatura em que a mamãe apareceu com a maquiagem toda borrada de tanto chorar. Afinal, foram muitas horas extras como professora para conseguir formar uma médica. Lembro que os meus livros minha mãe comprava em parcelas e as parcelas acabavam junto com o semestre. Então, mamãe só se livrou delas na formatura. Acho que era por isso que ela chorava tanto!
Ah! O vovô também está lá sempre tão garotão de calça jeans e blusão no meu casamento! Tive que colocar a vovó do outro lado da caixa senão ela ia estar desmaiada até hoje vendo ele vestido assim no casamento. Mas ele está lá contando suas piadas infames. E é por isso que os outros  estão rindo.
Jussara, minha babá, comigo no colo, como me lembro dos doces da Jussara e de como ela chamava a gente pra tomar banho dizendo que tinha uma coisa gostosa na cozinha mas antes tinha que tomar banho porque coisa gostosa não aceita desaforo. Jussara morreu velhinha aqui em casa. Não tinha família e foi ficando. Não tinha para onde ir. Já tão fraquinha eu dizia: Jussara, tem uma coisa gostosa lá na cozinha te esperando mas antes tem que tomar banho. Ela me olhava e sorria e eu escutava dos seus olhos : Você é a filha que eu não nasceu de mim mas tive a felicidade de cuidar!


Porco, o cachorro mais engraçado que já vi. Quando brincávamos de pique esconde apostávamos quem o Porco ia encontrar primeiro. O que ninguém sabe até hoje é que eu sempre me escondia com uma guloseima e antes de sair correndo mostrava ao Porco. Como era guloso aquele cachorro! Eu sempre ganhava as apostas e ele, as iguarias. Nem preciso falar que ele não gostava de tomar banho!

De repente, sem eu nem ainda abrir a caixa, as lágrimas começaram a rolar no meu rosto. Desceram sôfregas, insistentes, vieram de um mundo protegido, desabitado e marcaram minha face com terríveis saudades. Foi quando levantei-me da cadeira, peguei uma fita que estava dentro da gaveta, passei em volta da caixa, dei um laço e coloquei-a de volta em seu lugar. Fui colocando as coisas que estavam espalhadas pelo chão desordenadamente de volta no armário. Pedro Henrique entrou e com a inocência dos seus cinco anos perguntou:
-Ué mamãe, você não ia arrumar o armário? Então respondi:
-Arrumar o armário dói.
Assim como eu guardei o mar da vovó, acho que ele um dia vai guardar essa frase numa caixinha de madeira.


Um Carnaval do Diabo

O diabo pediu permissão para ir ao Carnaval do Rio de Janeiro. A permissão foi  concedida porém, com uma condição: o diabo teria de viver seus dias de folia como um ser humano, não poderia utilizar seus poderes sobrenaturais. Caso ele descumprisse o trato, seria impedido de retornar ao inferno e passaria a eternidade no Rio como pobre recebendo salário mínimo.
Visto que iria ser uma provação muito grande o diabo ainda tentou negociar:
- Não dá para ser político? Mas o grande chefe vetou sua reivindicação. Se quiseres ir à Terra, serás como pobre. Se descumprires as regras, ficarás lá a eternidade.
Então o diabo aceitou as condições impostas e foi enviado diretamente para o Rio de Janeiro.
Ao chegar olhou à sua volta e pensou ué, cadê a praia? Ele ficou andando pra lá e pra cá e não viu nenhum vestígio da orla carioca. Só viu uma praça suja e mal cuidada. Ia passando um transeunte , então perguntou: Escuta senhor, onde eu estou?
- Aqui é a Pavuna.
- E como eu faço para chegar ao Centro? Hoje é dia do Cordão do Bola Preta.
- É só o senhor descer essa rua em frente. Lá embaixo pega o metrô. É bem aqui em frente. É a última estação.
O diabo foi descendo e logo sentiu o suor escorrer em seu rosto. Realmente ali não tinha nem aquela brisa marítima que alivia um pouco no verão. Ele foi descendo e pensando “ai  que  calor! aqui está parecendo até o inferno!” Ao chegar na estação do metrô,  ficou perplexo:
- Senhora, essa multidão está indo para o Cordão do Bola Preta?
- Sim. Olha a animação!  Estão até cantando!
- Mas esse trem vai cheio assim?
- O senhor está achando cheio? De segunda a sexta é pior na hora de ir para o trabalho.
O diabo entrou no vagão e ficou tentando se acomodar de uma maneira que ficasse mais confortável. As pessoas cantavam marchinhas e riam, visto que já estavam acostumadas com as vicissitudes da cidade, mas o diabo ia irritado. De vez em quando ele lançava um olhar em torno do vagão e observava a estranha alegria das pessoas em ir num vagão apertadas e no calor, pois o sistema de refrigeração já não dava conta da quantidade de pessoas embarcadas. Foi em uma dessas incursões visuais que o diabo observou a morena de cabelo comprido, short, camiseta do bloco e colar de havaiana. Ela estava animada, sorrindo e logo encontrou o olhar  sedutor do diabo. Este sorriu para ela que lhe retribuiu o sorriso. Ao chegar na estação Cinelândia a maioria das pessoas desembarcou e o diabo aproximou-se da morena:
- Escuta, você sabe onde o bloco fica concentrado? É que eu não sou daqui. Vim para o Carnaval.
- É claro!  Respondeu-lhe solicitamente. Meu nome é Sueli.
- O meu é Pedro. Pedro del  Fuego.
- Me acompanha então Pedro.
Ao chegarem ao bloco, o diabo cantou, dançou, pagou cerveja para a morena e entre uma marchinha e outra, roubava um beijo da Sueli. Depois foram para o Empolga às 9, que só sai à 11h, depois para o Sassaricando e de bloco em bloco,  esta, que já estava encantada com a beleza e o modo sedutor de Pedro, não resistiu quando ele convidou-a para  um programa só a dois à noite.
As três horas de espera na recepção de um motel não tiraram o bom humor do diabo que desde o momento que conheceu Sueli, nada mais parecia importar. E aproveitava a espera para ir esquentado o clima. As mãos pareciam que se multiplicavam à medida que ia passando o tempo.
Ao subir para o quarto, o diabo lembrou-se que tinha um problema: como iria esconder o rabo? Há tanto tempo vivia no inferno e não tinha permissão para sair que esqueceu que o rabo seria a causa de um estranhamento e até poderia assustar Sueli a ponto dela ir embora e não querer mais vê-lo. Então,  ali, diante da bela morena, ele sentiu-se frágil pela primeira vez em sua longa existência. Porém, astuto que era, logo o problema transformou-se em solução. Disse para Sueli que era tímido nessa horas e só se sentiria confortável com as luzes apagadas. O tempo todo imobilizava as mãos dela alegando tratar-se de um fetiche. A morena não se opôs. Concordou, animada com a extravagância do rapaz.
E assim passaram os quatro dias de folia: De bloco em bloco, o diabo e a morena  cantavam a vida e deixavam a marca daquela paixão em confetes e serpentinas. Depois faziam amor como se tivessem condenados a ir para o inferno depois do Carnaval. Na terça-feira um pequeno incidente quase tirou o bom humor do diabo. Ao colocar a mão no bolso para pagar a cerveja , cadê a carteira? Ele percebeu que fora roubado e pensando que poderia em um piscar de olhos mandar o ladrão para o inferno, ele respirou fundo, nervoso, pois teria de cumprir as regras. Sueli percebendo que Pedro transpirava  e tremia perguntou o que acontecera. E ele respondeu: Fui roubado. A moça com a maior tranqüilidade, responde: Ah! Isso é comum!  Logo se vê que você não é do Rio. Tinha documento? Se tiver, vai dar muito trabalho!
-Não. Não tinha documento.
-Quer fazer o registro?
-Não quero perder nem um minuto dessa festa. Quero ficar com você, responde já recomposto.

Na Quarta-Feira de Cinzas, o diabo acordou chateado. Terminara sua permissão para a permanência na Terra. Logo, apareceu um portal à sua frente. Ele só conseguia pensar em sua morena. Não queria deixar Sueli. Então, ignorou o portal e resolveu não voltar.
Contou para Sueli que abandonara o emprego. Queria ficar com ela. Não voltaria para sua terra. A morena comovida com tamanha demonstração de amor, hospedou-o em seu conjugado na Glória. Ele prometeu-lhe o céu.
Meses depois começou sua campanha política. Bonito, inteligente e articulado, não demorou para que Pedro del Fuego  liderasse as pesquisas com uma campanha forte em que prometia entre outras coisas, vale ar-condicionado para todas as comunidades carentes e pacificadas durante todo o verão carioca. Ocupada a cadeira na Câmara dos Deputados, Sueli passou a usar jóias e grifes e a única preocupação do diabo passou a ser - esconder o rabo.


terça-feira, 24 de julho de 2012


Tela  em branco

A minha tela está na minha frente. Levei um ano para concluí-la. É complexa e absolutamente branca. Essa tela exprime todo o meu amor  e toda minha maldade. Nela habita o que eu conheço e o que não conheço de mim. Por isso  é tão misteriosamente branca.
Essa tela retrata a dor, o conflito das cores. Afinal, que cor retrata o eu? Se eu não estivesse pintando diria que o azul mas quando pinto surge um eu que desconheço, um eu que me confronta diante do mundo.
Por que não colorido? Porque iriam faltar cores para pintar tudo que sinto. Porque não existem todas as tonalidades para expressar minha alma e porque  eu não meço as cores, pois seria arbitrário. O quanto de mim é azul? O quanto de mim é amarelo? O quanto de mim é verde?  Sei que não encontrarei respostas. Por isso não faço perguntas. Apenas pinto.
 Pintar uma tela em branco é não pintar? Olhe para a tela! Ali estão todos os amores que tive! Cada início e cada final. E por que não os meios? Os inícios  cheios de jantares, cinemas, teatros, vinhos, esperanças. O olhar morno do Paulo, o sorriso brejeiro, suas mãos que tateavam meu corpo tentando descobrir meus mistérios, seus abraços quentes, suas palavras doces, sua respiração, seu cheiro, seu peso, sua voz abafada, entrecortada, o falo.
O falo no centro da tela me desafia. Ele mostra  a completude da natureza humana, a consciência  do que  estou sendo porque ainda não sou. Me falta.
O Silêncio.
O silêncio está na tela em branco. O silêncio anuncia o fim. A dor. A dor de todas as coisas. A dor que eu senti quando Paulo disse adeus. Quantas cores têm o adeus? Não sei. Ainda não sei sentir o adeus. O adeus é dolorosamente branco. É a mistura e a ausência de cores. É o infinito de tons, é o vazio que transborda. É um ponto indeterminado porque  dói imensuravelmente.
Conheci Carlos numa galeria de arte. No começo sabia que não poderia amá-lo pois estava repleta do Paulo. Carlos era bonito, espirituoso, me fazia rir, gostava de música e cinema. Andávamos de bicicleta aos domingos pela manhã. Paulo foi se diluindo no tempo e no espaço. Carlos foi adquirindo cores mais vibrantes. Discutíamos política, conflitos familiares e a religião que não tínhamos. Passei a amá-lo com algumas tonalidades e me sentia bem ao seu lado até que alguém disse que ele tinha outra. Terminei a relação com um ponto de interrogação.
 Curiosamente chorei. Derramei umas nuances na tela. Acho que amei o Carlos mais do que tinha consciência ou queria admitir. E enxergo a outra ali na tela rindo de mim com suas dez bocas e uma postura de superioridade. E sinto que fui a outra, eu fui a sua mentira, o seu fantasma, a indecente vaidade. Fui o escárnio, a patética realidade, a máscara, a sombra, a imoralidade. Não sei dizer o que senti. Mas pintei nessa tela a dor, o assombro, a vergonha, a humilhação, o desprezo, a raiva.
Na tela  há muita felicidade! Não há nada mais doce e angelical como o sorriso da mamãe. Veja como é singelo!
Há também o amor pelos objetos. Como amo meu abajour de elefantinho e a saia desbotada que não cabe mais em mim! Não sei por que mas amo.  Não me desfaço do que amo e não preciso explicar nem teorizar. Apenas pinto.
E na contemporaneidade da minha vida surgiu um amor que já nasceu imortal. Um amor que não obedece a nenhuma regra visto que é regido unicamente pelas leis do coração. De uma relação morna e quase insignificante com Vicente ele deslizou quente pelas minhas entranhas e em meu colo cantou a paz que eu tanto desejava. Seus olhos vibram cores que eu jamais pensei que exisstissem e sinto que tudo é pequeno diante da natureza reinante de um recém-nascido.
E é por isso que pinto essa tela em branco-porque não tenho cores nem palavras para exprimir todo o amor que sinto.