Laços Eternos
Arrumando o armário Domingo à tarde, encontrei perdida nesse
imenso mundo de esquecimento, uma caixa de madeira onde eu guardo fotografias.
É difícil arrumar o armário no Domingo porque cada coisa que encontro tem uma
história e traz à tona cenas de um filme
à minha cabeça. Fico analisando cada peça retirada desse grande coração
que é o meu armário e relembrando fatos. Por isso, da próxima vez que eu for
arrumar o armário, vou começar na Segunda-feira para terminar no domingo.
Bom, encontrei a caixinha de madeira. Alguma coisa doeu
dentro de mim. Não a abri imediatamente. Sentei na cadeira que fica junto à
mesa do computador e fiquei alguns minutos olhando para ela. Eu sabia que lá
dentro havia grandes momentos da minha vida. Por isso, estavam lá, na caixinha
de madeira dentro do armário. Outras fotos encontravam-se em álbuns nas
prateleiras do quarto porém as mais emocionantes, aquelas que iam me fazer rir
ou chorar estavam lá, naquela caixa. Acariciei-a como se fosse um amor antigo,
senti seu cheiro imponente de madeira velha, coloquei-a em cima da mesa. Eu
olhava para ela e sentia uma dor imensa. Eu sabia que a minha avó estava lá,
minha vozinha que eu só lembro dela magrinha, com cabelo branquinho, sentada em
sua poltrona lendo um grande livro grosso que na época eu não entendia direito
mas ela contava a história de alguém que dividiu um mar ao meio e o atravessou.
Acho que veio daí, das histórias da vozinha, esse meu gosto por Edgar Allan Poe, Jorge Luis Borges, Gabriel
García Máquez, Julio Cortázar, Murilo Rubião e tantos outros escritores que
escrevem sobre o fantástico, o insólito.
Sabia também que mamãe morava naquela caixinha. Ah! Mamãe,
sempre tão carinhosa! Sempre tão preocupada! Eu sabia que aquela foto que eu
estava no parquinho e mamãe me empurrando no balanço estava lá assim como a do
dia da minha formatura em que a mamãe apareceu com a maquiagem toda borrada de
tanto chorar. Afinal, foram muitas horas extras como professora para conseguir
formar uma médica. Lembro que os meus livros minha mãe comprava em parcelas e
as parcelas acabavam junto com o semestre. Então, mamãe só se livrou delas na
formatura. Acho que era por isso que ela chorava tanto!
Ah! O vovô também está lá sempre tão garotão de calça jeans
e blusão no meu casamento! Tive que colocar a vovó do outro lado da caixa senão
ela ia estar desmaiada até hoje vendo ele vestido assim no casamento. Mas ele
está lá contando suas piadas infames. E é por isso que os outros estão rindo.
Jussara, minha babá, comigo no colo, como me lembro dos
doces da Jussara e de como ela chamava a gente pra tomar banho dizendo que
tinha uma coisa gostosa na cozinha mas antes tinha que tomar banho porque coisa
gostosa não aceita desaforo. Jussara morreu velhinha aqui em casa. Não tinha
família e foi ficando. Não tinha para onde ir. Já tão fraquinha eu dizia:
Jussara, tem uma coisa gostosa lá na cozinha te esperando mas antes tem que
tomar banho. Ela me olhava e sorria e eu escutava dos seus olhos : Você é a
filha que eu não nasceu de mim mas tive a felicidade de cuidar!
Porco, o cachorro mais engraçado que já vi. Quando
brincávamos de pique esconde apostávamos quem o Porco ia encontrar primeiro. O
que ninguém sabe até hoje é que eu sempre me escondia com uma guloseima e antes
de sair correndo mostrava ao Porco. Como era guloso aquele cachorro! Eu sempre
ganhava as apostas e ele, as iguarias. Nem preciso falar que ele não gostava de
tomar banho!
De repente, sem eu nem ainda abrir a caixa, as lágrimas
começaram a rolar no meu rosto. Desceram sôfregas, insistentes, vieram de um
mundo protegido, desabitado e marcaram minha face com terríveis saudades. Foi
quando levantei-me da cadeira, peguei uma fita que estava dentro da gaveta,
passei em volta da caixa, dei um laço e coloquei-a de volta em seu lugar. Fui
colocando as coisas que estavam espalhadas pelo chão desordenadamente de volta
no armário. Pedro Henrique entrou e com a inocência dos seus cinco anos
perguntou:
-Ué mamãe, você não ia arrumar o armário? Então respondi:
-Arrumar o armário dói.
Assim como eu guardei o mar da vovó, acho que ele um dia vai guardar essa frase numa caixinha de madeira.
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