Uma Casa ao Avesso
Era uma casa grande e bonita. Seus habitantes
promoveram uma festa que nunca terminou e portanto, ninguém foi embora.
Casaram, tiveram filhos e seus filhos tiveram filhos.
A festa já estava na
terceira geração quando comecei a sentir umas dores, uma sensação estranha. Fui
andando até o banheiro e tudo aconteceu: senti uma dor horrível em todo o meu
corpo que ia encolhendo a ao mesmo tempo surgindo pernas, antenas e asas. Fui
cambaleando, meio tonto a ainda não tinha noção do que estava acontecendo
quando olhei para frente no enorme espelho na parede e só vi uma barata. Fiquei
me procurando até que percebi quando eu fazia um movimento, aquele bicho se
mexia no espelho. Mexi a pata dianteira. Ela se mexeu. Mexi a traseira. Ela se
mexeu. Enchi os pulmões de ar e senti que levitava. Vi a barata voando e quando
desejei parar, beijei-a no espelho. Não tinha mais dúvida: eu era ela. Foi
quando tive a infeliz ideia de contar aos meus amigos o que aconteceu. Saí
correndo do banheiro e fui percebendo que as mulheres afastavam-se de mim com
terror e quando cheguei por fim ao meu grupo, meus amigos tentaram me matar,
pisavam freneticamente em mim e nem sequer deixavam-me falar, pois eu não
queria ficar naquela situação e tentava desesperadamente me comunicar. Mas eles
não me deram ouvidos, a menor consideração depois de tantos anos, é só ter um
problema e pronto, os amigos viram a cara e ainda pisam em cima.
Devido a tanta falta de
compreensão, resolvi me esquivar e procurei um canto para ficar. Sempre quando eles
mudavam de ambiente, eu saía, revirava os restos de comida deixados sobre a
mesa e dava uns goles numa cerveja qualquer esquecida. Depois me esgueirava de
novo no meu buraco. Tudo ia razoavelmente bem mas comecei a sentir uma solidão
muito grande. Incompreendido pelos amigos e sem nenhum ser da minha espécie
para conversar, comecei a escrever poemas que tratavam da condição da
existência quase humana. Numa tarde enquanto eu escrevia um dos meus poemas no
sótão da casa, percebi alguma coisa se mover. Quando eu olhei, dei de cara com
ela no outro lado da parede. Ela locomovia-se com altivez, parecendo ter
consciência de ser a única fêmea de sua espécie nessa casa mas sem dúvida
nenhuma, era uma rainha e como tal merecia ser reverenciada. Então, levantei-me
e não poupei esforços para ser visto por ela. Caminhei com um certo ar
aristocrático e levantei minhas asas a fim de demonstrar minha elegância.
Percebi que ela me olhava meio ressabiada. Então alcei voo para me exibir visto
que já estava apaixonado por aquele par de olhos amendoados. Dessa vez ela não
me ignorou e aproximou-se pedindo desculpas por ter invadido minha casa. Disse
que não se preocupasse pois há muito ansiava por companhia. Então ela me contou
que morava do outro lado, no jardim mas só saía à noite para buscar comida. Perguntou
o que eu fazia quando apareceu. Então falei sobre os meus poemas e prometi que
os próximos seriam de amor e que eu iria sussurrá-los todas as noites ao seu
ouvido. Ela riu. Foi então que percebi que nessa minha nova existência não
sabia o que fazer com uma fêmea bonita. Mas foi ela quem tomou a iniciativa.
Chegou bem pertinho de mim. Pude sentir seu perfume que me deixava extremamente
excitado. Foi então que ela encostou suavemente suas antenas nas minhas e
ficamos muito tempo assim agarradinhos nos antenando. Então ela subiu em cima
de mim, beijou-me com sofreguidão. Pude sentir seus pelinhos roçando nos meus e
encaixamos nossos corpos ardentemente. Depois adotamos a posição end-to-end e passamos a noite toda nessa
maratona amorosa.
O sótão era o meu paraíso,
um lugar idílico onde eu ia para me inspirar e escrever minhas poesias. Dois
meses passaram desde que nos conhecemos e convidei minha rainha para morar
comigo ali onde já era de certa forma, nosso ninho de amor. Disse que sairia do
meu buraco e moraria com ela ali. Não precisaríamos fazer nenhuma adaptação
visto que não éramos exigentes. Mas ela era uma barata moderna e preferia
continuar no seu jardim e vir à noite me visitar.
A vida lá fora também
estava se modificando. O que aconteceu comigo bruscamente estava acontecendo com eles só que de forma
bem gradual. A cada dia eles encolhiam um pouquinho e iam-lhes surgindo
indícios de novos membros, fatos que nem percebiam. A rotina de uma vida repleta de prazeres
consumistas, a festa interminável e o álcool preenchiam-lhes os espaços e eles
viviam felizes. Só eu percebia tudo. Só eu sentia a dor de já ter sido humano e
ter visto o meu cérebro diminuir ao
tamanho de uma migalha de pão. As crianças que nasceram este ano já nasceram
modificadas geneticamente- com seis patas, antenas, branquinhas feito uma gosma
mas com formato de bebê humano. A última mulher que deu à luz, procurou um
lugar tranquilo e úmido para depositar seus ovos. Ainda não vimos seus filhotes
mas acredito que esses já vão nascer perfeitas baratinhas.
Resolvi escrever estas
palavras e deixar registrada essa minha vida de pseudobarata para que
cientistas possam estudar esse fenômeno que chamo de desevolução das espécies e
que possam descobrir o que está acontecendo com essa casa que já foi tão humana
e habitat de vida inteligente.
Bom, encerro aqui essas
minhas observações pois tenho poucas horas de vida e estou perdendo minhas
forças. No começo do mês eu resolvi dar uma saidinha pela manhã, ação que nunca
pratiquei nessa vida de inseto pois, sempre fui prudente desde a minha forma
humana. Fui buscar alimento para minha rainha que está grávida quando enfim, o
Gustavo conseguiu me acertar com um sapato. Perdi uma pata e minha cabeça.
Corri muito mesmo tonto e manco e consegui entrar numa fresta do azulejo. Só
saí muitas horas depois. Nasceu outra pata em alguns dias mas a perda da cabeça é realmente mortal
até para uma barata. Desculpem-me se a letra estiver torta ou ilegível. Fiz o
máximo que pude. Adeus minha rainha! Há um lugar da casa que recomendo aos meus
príncipes e princesas que irão nascer- a biblioteca. Incentivo que a
frequentem. Vale a pena correr os riscos!
Parabéns pelo seu blog ele é D+!!!
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