terça-feira, 24 de julho de 2012


Tela  em branco

A minha tela está na minha frente. Levei um ano para concluí-la. É complexa e absolutamente branca. Essa tela exprime todo o meu amor  e toda minha maldade. Nela habita o que eu conheço e o que não conheço de mim. Por isso  é tão misteriosamente branca.
Essa tela retrata a dor, o conflito das cores. Afinal, que cor retrata o eu? Se eu não estivesse pintando diria que o azul mas quando pinto surge um eu que desconheço, um eu que me confronta diante do mundo.
Por que não colorido? Porque iriam faltar cores para pintar tudo que sinto. Porque não existem todas as tonalidades para expressar minha alma e porque  eu não meço as cores, pois seria arbitrário. O quanto de mim é azul? O quanto de mim é amarelo? O quanto de mim é verde?  Sei que não encontrarei respostas. Por isso não faço perguntas. Apenas pinto.
 Pintar uma tela em branco é não pintar? Olhe para a tela! Ali estão todos os amores que tive! Cada início e cada final. E por que não os meios? Os inícios  cheios de jantares, cinemas, teatros, vinhos, esperanças. O olhar morno do Paulo, o sorriso brejeiro, suas mãos que tateavam meu corpo tentando descobrir meus mistérios, seus abraços quentes, suas palavras doces, sua respiração, seu cheiro, seu peso, sua voz abafada, entrecortada, o falo.
O falo no centro da tela me desafia. Ele mostra  a completude da natureza humana, a consciência  do que  estou sendo porque ainda não sou. Me falta.
O Silêncio.
O silêncio está na tela em branco. O silêncio anuncia o fim. A dor. A dor de todas as coisas. A dor que eu senti quando Paulo disse adeus. Quantas cores têm o adeus? Não sei. Ainda não sei sentir o adeus. O adeus é dolorosamente branco. É a mistura e a ausência de cores. É o infinito de tons, é o vazio que transborda. É um ponto indeterminado porque  dói imensuravelmente.
Conheci Carlos numa galeria de arte. No começo sabia que não poderia amá-lo pois estava repleta do Paulo. Carlos era bonito, espirituoso, me fazia rir, gostava de música e cinema. Andávamos de bicicleta aos domingos pela manhã. Paulo foi se diluindo no tempo e no espaço. Carlos foi adquirindo cores mais vibrantes. Discutíamos política, conflitos familiares e a religião que não tínhamos. Passei a amá-lo com algumas tonalidades e me sentia bem ao seu lado até que alguém disse que ele tinha outra. Terminei a relação com um ponto de interrogação.
 Curiosamente chorei. Derramei umas nuances na tela. Acho que amei o Carlos mais do que tinha consciência ou queria admitir. E enxergo a outra ali na tela rindo de mim com suas dez bocas e uma postura de superioridade. E sinto que fui a outra, eu fui a sua mentira, o seu fantasma, a indecente vaidade. Fui o escárnio, a patética realidade, a máscara, a sombra, a imoralidade. Não sei dizer o que senti. Mas pintei nessa tela a dor, o assombro, a vergonha, a humilhação, o desprezo, a raiva.
Na tela  há muita felicidade! Não há nada mais doce e angelical como o sorriso da mamãe. Veja como é singelo!
Há também o amor pelos objetos. Como amo meu abajour de elefantinho e a saia desbotada que não cabe mais em mim! Não sei por que mas amo.  Não me desfaço do que amo e não preciso explicar nem teorizar. Apenas pinto.
E na contemporaneidade da minha vida surgiu um amor que já nasceu imortal. Um amor que não obedece a nenhuma regra visto que é regido unicamente pelas leis do coração. De uma relação morna e quase insignificante com Vicente ele deslizou quente pelas minhas entranhas e em meu colo cantou a paz que eu tanto desejava. Seus olhos vibram cores que eu jamais pensei que exisstissem e sinto que tudo é pequeno diante da natureza reinante de um recém-nascido.
E é por isso que pinto essa tela em branco-porque não tenho cores nem palavras para exprimir todo o amor que sinto.

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